terça-feira, fevereiro 25, 2003

Fora do normal
Essa história "saiu" de mim há vários anos (está datada de 8/set/01 no word), e até hoje eu acho ela muito engraçada. Talvez uma das melhores que eu já escrevi, nesse estilo. (Na verdade, isso é bastante controverso... mas enfim, aqui está.) Apesar de não ter muito a ver com a proposta deste blogger, ainda acho que vale a pena.

Era uma vez uma família muito estranha, que apareceu aqui na cidadezinha. Mas era uma família muito estranha mesmo. Eles eram em seis: um casal de japoneses, e quatro crianças pequenas.

O pai era um japonês magricelo, devia ter 1,75m de altura, sempre despenteado; magro, magro, magro, que dava até dó de ver. Era até meio corcunda, o pobre moço.

A esposa, uma japonesa com a voz esganiçada, que mais parecia uma taquara rachada desafinada, e estava sempre braba com o marido. O coitado do marido ficava sempre calado.

As quatro crianças eram assim: O mais velho devia ter uns 6 anos de idade, tinha o cabelo arrepiado, e às vezes passava máquina zero, e este era o único corte que faziam nele. Os dois filhos do meio eram gêmeos e deviam ter uns três ou quatro anos. Andavam sempre de mãos dadas com a mãe, e tinham o cabelo encaracolado. Isto era muito estranho, e motivo de muitas dúvidas na cidade. Mas tinham, de fato, olhos puxados.

O caçula, este sim era super estranho. Ninguém sabia se era menino ou menina, e devia ter um ano de idade. Era tão japonês, mas tão japonês, que alguns até duvidavam que ele/a enxergava, tamanha era sua dificuldade em abrir os olhos. O mais engraçado de tudo era que esta pobre alma estava sempre nas costas da mãe, numa espécie de mochilinha, feita com um tecido todo colorido. Quando a mãe andava, parecia que a cabeça dele/a ia cair, de tanto que balançava, e de tão solta que parecia.

Quando eram vistos por aí, era sempre assim: a mãe segurando o mais velho pela mão, os gêmeos na outra mão, e o mais novo na sua eterna mochilinha, nas costas, e com o nariz escorrendo. Sempre conversavam em japonês (supunha-se que fosse japonês, mas podia ser coreano ou chinês), isto é, era sempre a mulher que falava aos berros com o marido palavras indecifráveis, e este sempre balbuciava algum monossílabo, e obedecia a mulher.

Certa vez, no mercado, a criança mais nova começou a chorar, aparentemente sem motivo, seguida pelos gêmeos, e depois pelo mais velho. Foi quando o marido resolveu mostrar presença, e levantou a voz pra esposa. Falou meia dúzia de coisas, e a mulher, que já estava bronqueando com ele há pelo menos meia-hora, ficou louca da vida. Começou a gritar ainda mais e a bater nele com a bolsa. O segurança do mercado chegou, e, junto com a multidão, ficou olhando aquela cena dantesca. Não sabia se ria, se chorava, ou se ia lá separar a briga, mas deve ter ficado com medo de apanhar da japa, e ficou lá no cantinho, se escondendo atrás do extintor. A família toda saiu do mercado em seguida; ela aos berros com o marido, gritando sons indecifráveis e fazendo gestos bem amplos; ele, com um corte no supercílio, tentando estancar o sangue com a mão; e as quatro crianças chorando bem alto.

Ninguém sabia fornecer uma explicação lógica para aquilo tudo, e nem dizer o que houve nos três dias seguintes. Ninguém saiu daquela casa até a quinta-feira. O nosso pobre anti-herói sequer foi trabalhar nesses dias. Apareceu na fábrica no quarto dia, como se nada tivesse acontecido

A propósito, ele trabalhava numa fábrica, na linha de montagem, parafusando peças, bem ao estilo "tempos modernos", de Chaplin. Nunca conversava com ninguém, mas o chefe dele jurava que ele sabia falar português. Falava tudo errado, mas falava.

Na semana seguinte ele apareceu na fábrica um pouco diferente. Parecia nervoso. Ficou falando sozinho o tempo todo, e nos intervalos não comeu nada, e ficou falando sozinho, mais alto ainda. Dava até murros na mesa.

Naquela noite ele foi pro bar. Resmungou algumas coisas e fez alguns gestos pro garçom, e serviram pinga pra ele. Ele bebeu várias doses, e no final estava até cantando. Às vezes batia na mesa, e também batia com o pé no chão.

Entregou algumas notas amassadas ao garçom, e saiu trançando as pernas, esbarrando nos postes e cantando bem alto. Seguiu pelo meio da rua até a praça, e dormiu por lá mesmo, num banco.

Desde então, nunca mais foi visto. Nem ele, nem seu corpo. Alguns acham que ele foi para o céu naquela noite mesmo, com corpo e tudo.

A mulher e os filhos ficaram por lá mais umas semanas, e depois viajaram, de ônibus, para bem longe, provavelmente para ver o resto da família.

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