quarta-feira, julho 17, 2002

Jogadora

Depois de todas as mágoas, e de todos os medos, ele voltou. Engoliu aquele orgulho óbvio e idiota e disse que ainda me amava. Eu fiquei alguns minutos olhando silenciosamente pra aquela boca, fina e tímida, que acabara de pronunciar tais palavras. E eu não soube. Falei - e disso eu tenho certeza - que "a vida é grande". Ele só concordou com um movimento de cabeça e sorriu.
Misturei o meu café, já frio, e fiquei esperando que algum rosto passasse. Mas, ironicamente, o mundo tinha decidido parar. Tive vontade de cuspir na cara do mundo, mandar-no à puta que o pariu e perguntar se ele achava que podia fazer isso, e acabar com as minhas fugas.
Olhei pro rosto dele. Nervoso, simples. Rosto de passado. Rosto que eu achava, naquele momento, já ter visto em todos seus possíveis estados e situações. Notei que o rosto falava. Comecei a tentar prestar atenção às suas palavras... Eram qualquer coisa entre cachorros e festas. Palavras nervosas, ríspidas, cuspidas sem fazer sentido. Acompanhadas de risinhos nervosos. Eu não quis lembrar, mas eu odiava aqueles risinhos nervosos, aqueles dentes pequenos. Eu odiava ele por tê-lo visto sério apenas umas duas vezes na vida. Odiava aquele revesamento "risinho nervoso - choro - cara de mágoa" dele. E pra mim ele era isso: um café frio, nervoso e chato.
E eu sabia que eu era uma boa pessoa, pois eu ainda sentia um certo carinho pelo café nervoso. Comecei a me sentir desconfortável com o fato de estar naquele lugar. Minha lógica insólita quis que eu me sentisse culpada por estar ali com ele, que ainda me amava. Me fez sentir traidora. Eu sorri. Era uma boa traidora. Dissimulada e rasteira. Eu tinha começado aquela conversa pra ouvir aquelas palavras; pra eu ouvir que o café frio que eu não amava ainda me amava. Pra inflar meu ego, o maldito.
Meu ego e meu bom-senso nunca foram bons amigos. O amor que eu sentia se dava bem com o bom-senso e invejava o ego. Mas o ego era mau, frio e calculista. E até disso ele tirava proveito: explorava o amor até a última gota, acabando com ele, jogando-o fora quando não havia mais nada que fosse aproveitável. E eu ficava ali, com um ego obeso e não entendendo por que o amor acabou.
Voltei para o café frio. - O de verdade, não o análogo. - Misturei-o e esvaziei a xícara, num só gole. Perguntei como estava a mãe dele e ele respondeu algo engraçado. Olhei no relógio e falei que eu tinha que ir. Ele não se opôs. Se ele fosse uma pessoa sensata, teria me insultado antes da despedida. Mas ele só disse que ía ficar mais um pouco, e eu entendi que era pra evitar que fôssemos embora juntos. A gente era assim. Tínhamos uma cumplicidade cega e nojenta de tão exata. E só isso. Cumplicidade.
Joguei a minha parte da conta na mesa e levantei. Ele levantou-se também e beijou meu rosto. E me ajudou a vestir a jaqueta. E sorriu, calmo.
Caminhei para a casa com o pensamento inerte, devastado por esses últimos gestos. Por essa última certeza de que o que eu tive de mais longo na vida tinha acabado. E, por um lado, eu me senti bem.
Cheguei em casa e fiz café. E na mesma hora o telefone tocou. Era o café novo; calmo, carinhoso e lindo. - Até que se prove o contrário.

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