quinta-feira, janeiro 24, 2002

"Eu Sei Mas Não Devia"
(Clarice Lispector)

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.


A gente se acostuma a morar em apartamentos
de fundos e a não ter outra vista que não
as janelas ao redor. E porque não tem vista,
logo se acostuma a não abrir de todo as
cortinas. E porque não olha pra fora, logo
se acostuma a acender cedo a luz. E a medida
que se acostuma, esquece o sol, esquece o
ar, esquece a amplidão.


A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora. A
tomar café correndo porque está atrasado. A
ler o jornal no ônibus porque não pode
perder o tempo da viagem. A comer sanduiche
porque não dá para almoçar. A sair do
trabalho porque já é noite. A cochilar no
ônibus porque está cansado. A deitar cedo e
dormir pesado sem ter vivido o dia.


A gente se acostuma a esperar o dia inteiro
e ouvir no telefone. Hoje não posso ir. A
sorrir para as pessoas sem receber um
sorriso de volta. A ser ignorado quando
precisava tanto ser visto. A gente se
acostuma a pagar por tudo o que deseja e o
de que necessita. E a lutar para ganhar
dinheiro com que pagar. E a pagar mais do
que as coisas valem. E a saber que cada vez
pagará mais. E a procurar mais trabalho,
para ganhar mais dinheiro, para ter com que
pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma à poluição. Às salas
fechadas de ar condicionado e cheiro de
cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz
natural. Às bactérias da água potável.


A gente se acostuma a coisas demais, para
não sofrer. Em doses pequenas, tentando não
perceber, vai afastando uma dor aqui, um
ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a
praia está contaminada a gente molha só os
pés e sua no resto do corpo. Se o cinema
está cheio, a gente senta na primeira fila e
torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro
a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer
a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito
porque tem sempre sono atrasado.


A gente se acostuma para não se ralar na
aspereza, para preservar a pele. Se acostuma
para evitar feridas, sangramentos, para
poupar o peito. A gente se acostuma para
poupar a vida. Que aos poucos se gasta,
e que, gasta de tanto acostumar,
que se perde de si mesmo.

::Gentilmente cedido, inconscientemente, pelo blog da Carol Lostchild.

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